ANÁLISE CRÍTICA DO CONTO “AMOR”, DE CLARICE LISPECTOR
Flávia Regina Evangelista
Este trabalho tem por objetivo apresentar uma análise crítica acerca do conto “Amor”, de Clarice Lispector, sob o viés da Crítica Psicanalítica. Apresentamos uma análise inicial, levantando pontos no texto em que o olhar psicanalítico pode contribuir para a interpretação e compreensão dos elementos apresentados. Nosso foco na análise são as sensações e situações enfrentadas pela personagem protagonista Ana durante a narrativa, ao se deparar com um dilema interno.
No conto, Ana é uma dona de casa, mulher dedicada exclusivamente a cuidar da sua família. Toda a sua atenção e preocupação está voltada aos serviços do lar, em cuidar dos filhos e do esposo, e a partir destas atividades ela sente-se útil, mas não feliz. A felicidade parece ser algo que é considerado importante para a sua vida de mulher adulta e atarefada. Antes ela a possuía, em sua juventude, mas agora esta parecia distante, inalcançável. Sua maior satisfação era saber que se fazia necessária para outras pessoas, fossem os filhos, o marido, os vizinhos. Esse é o mundo em que Ana vivia, escolhido conscientemente.
Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Entretanto, o mundo e as certezas da personagem se abalam, quando ela se depara com um cego que masca chiclete, ao voltar das compras para a sua casa, de bonde. Esse episódio provoca uma inquietude na protagonista, pois desperta nela pensamentos e reflexões a cerca da vida e da sua realidade. Ainda no bonde, ela acaba passando do ponto referente à sua casa, e vai se parar próximo ao Jardim Botânico, entrando nele para pegar um atalho para casa. Entretanto a beleza natural do lugar chama a sua atenção, pois a cegueira que ela vira no homem e lhe causara piedade, aguçou os seus próprios sentidos, como se ela se desse conta de tudo ao seu redor, daquilo que apesar de enxergar ela não via. A falta do objeto, a visão, do outro ressaltou a presença do objeto nela. Era como se ela tivesse acordado para a vida que ia além da que ela tinha.
É a partir desse momento que Ana se vê entre o cego e o jardim. Podemos inferir esses dois elementos como metáforas, em que o primeiro representa a condição em que a personagem se apresentava, fechada para enxergar a vida além do mundo que ela criou para si; e o segundo, o jardim, como a verdade que a cercava, aquilo que mostrava a ela que a vida ia além do que ela possuía. É possível percebermos que a personagem já tinha consciência disso, mas que aquela situação trouxe á tona o que ela realmente pensava.
“As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas.”
Diante da revelação do que seria a verdade da vida, que iria além daquela que ela construiu para si, Ana se sente angustiada. Segundo Freud (1926, apud VANIER, 2008, p.287-288), “a angústia sobrevém inicialmente diante de um perigo extremo e ameaçador [...]A angústia é um sinal no eu, ela adverte o sujeito de um perigo que é o de um desejo enigmático que envolve seu ser como perdido e passível de anulação, seu ser como objeto que pode ser, sem saber qual, para o desejo do Outro”. Podemos perceber no conto que a personagem se sente inquieta, angustiada, pois seu mundo começa a ruir diante de si, e angustia-se por saber que não é mais a mesma: “Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver”.
A situação do encontro com o cego e a entrada no jardim fizeram Ana sentir e enxergar o mundo de outra forma, de um jeito que ela reprimia em si, desde a sua juventude, diante da instabilidade e incertezas de uma outra vida. Havia tanto no mundo (o jardim) e ele precisava dela (a vulnerabilidade do cego). Ao chegar em sua casa e encontrar seu filho, ela sentiu-se culpada por aquilo que sentia a respeito da vida. Segundo Freud a culpa pode se manifestar não somente diante de algo errado que tenha sido feito, mas também pelo “que não fez e desejou ter feito, alguma coisa considerada má pelo ego, mas não, necessariamente, perigosa ou prejudicial; pode, pelo contrário, ter sido muito desejada.” (apud BOCK et al., 2009, p.100). A personagem não tinha feito nada errado, entretanto o desejo que ela teve de sentir o mundo, indo além de sua vida familiar, fez com que ela sentisse culpa, talvez em não ter posto os seus filhos em primeiro lugar, o que é socialmente esperado que uma mãe faça diante de alguma escolha ou decisão.
Ao chegar em casa e abraçar-se com o filho, a personagem tenta voltar a ser a mesma que era antes da tarde que passara, tentando proteger-se da verdade que se mostrara para ela:
Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse.
A personagem percebe que a vida que construíra para ela não era o bastante, e que se seguisse para o mundo, iria sem a família, e agarra-se ao filho como se este fosse o seu porto seguro, enquanto ela fosse mãe e esposa, pedindo para que o menino não permitisse que ela se esquecesse dele. O desejo de mudança era forte para a personagem, entretanto o medo do incerto bloqueava suas ações. Tinha vontade de sair e ajudar o mundo, aquilo que ela sentia maior satisfação em fazer, mas tinha construído o seu lar e não queria perdê-lo.
Ao fim do conto, Ana decide esquecer tudo o que sentira e passara naquela tarde, a fim de voltar a ser a mesma de sempre “E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.”
Podemos perceber na personagem Ana durante todo o conto, uma formação reativa, em que, segundo Freud, “o ego procura afastar o desejo que vai em determinada direção, e, para isto, o indivíduo adota uma atitude oposta a este desejo.”(apud Bock et al., 2009, pag.102). Ao dedicar-se excessivamente á casa e á família, ela tentava esconder de si mesma, um desejo oposto de uma vida com maior liberdade e maiores horizontes. “Aquilo que aparece (a atitude) visa esconder do próprio indivíduo suas verdadeiras motivações (o desejo), para preservá-lo de uma descoberta acerca de si mesmo que poderia ser bastante dolorosa”(Bock et al., 2009, p.102).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
VANIER, Alain. Temos medo de quê. Ágora (Rio de Janeiro), v. 9, n. 2, p. 285-298, 2006.
BOCK, A. M. B.; FURTADO,O.; Teixeira, M.L.T. . Psicologias: uma introdução ao estudo da Psicologia. 14. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. v.1.368p .